«Como podemos pensar a comunidade de hoje em dia numa cidade cada vez mais impessoal, invadida e abandonada todos os dias? O grupo Teatroàparte, de forma arrojada e criativa, propõe-nos, através de um exercício pessoal e colectivo, uma reflexão sobre esta temática com o seu mais recente projecto, ‘Guarda-sol Amarelo’.
A peça está em cena e prolonga-se nos dois próximos fins de semana na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, demonstrando uma vez mais o porquê deste grupo de teatro ser um objecto atípico nos dias que correm.
“Recordo com um sorriso doce e nostálgico o que era ser criança em Telheiras. Essa Telheiras que já apenas suspira por baixo de prédios ricos e de uma azáfama constante.” É com esta recordação de um tempo que deixou de o ser mas que, ao mesmo tempo, evoluiu para um conceito de comunidade de século XXI, que somos invadidos ao ver ‘Guarda-Sol Amarelo’, peça do grupo de teatro Teatroàparte, que nasceu e vive dentro de Lisboa, em Telheiras.
Telheiras é um sem dúvida um caso especial não só pelas características de ‘aldeia’ dentro de uma cidade cosmopolita que mantém, mas também pela mobilização que os seus habitantes, devido à sua cultura, idade e predisposição mantém em relação a outras ‘aldeias’ dentro da cidade onde habitam de pessoas de idade já bastante avançada.
Através desta vontade surgiu o profícuo grupo de teatro Teatroàparte, que conta já com 12 anos de idade e com uma miríade de trabalho que atinge o clímax com a sua nova peça de Teatro: ‘Guarda-Sol Amarelo’.
Esta peça não é inocente e era, de certa forma, inevitável, tendo estado apenas a marinar de forma lenta para explodir com a dose certa de criatividade. Para quem segue o trabalho activo deste grupo de pessoas, cujo conjunto advém dos inputs de cada um, sabe que não é fácil gerir um grupo tão heterogéneo com idades e backgrounds tão diversificados. Saber aproveitar esta massa criativa e orientá-la para um resultado desta índole não é certamente pêra doce. Contudo podemos afirmar com segurança que se atingiu esse objectivo de forma clara e de certa forma brilhante.
Com esta peça foi posta em prática um tipo de exercício que nem sempre consegue ser bem sucedido. Colocou-se a nu o mapa emotivo dos actores com interpretações e textos escritos por si próprios. “A primeira ideia foi uma espécie de Conferência, teatro documental e show num espectáculo. Começámos a trabalhar a partir da Telheiras espacialmente, das idades e também a partir dos mapas emotivos das pessoas e um retrato da cidade sempre tendo Telheiras como referência, mas sempre com uma ideia de universalidade”.
Esta ideia de universalidade ganha uma nova dimensão a partir da forma como os actores expõem parte das suas vidas, sem que com isso seja gratuito ou sensacionalista o que curiosamente cria uma sensação de partilha verdadeiramente gratificante, tornando esta experiência mais rica e indo ao âmago do que uma experiência cultural deve ter. Além deste contacto mais pessoal com os actores, a peça acaba por ser também “histórias de 35 anos de democracia portuguesa e do contacto intra-geracional com o que existiu pelo meio”.
O mito que dá nome à peça veio segundo a explicação de um dos seus membros como uma metáfora para uma mobilização pessoal: “Há um guarda-sol amarelo na mitologia da Associação de Residentes de Telheiras, entretanto, tornado seu símbolo gráfico. Mas o mito do guarda-sol amarelo, difundido na pequena brochura, é também uma realidade materializada. Sempre que alguma coisa está para acontecer, há uma campanha em curso, ou se torna urgente gerar mobilização, os chapéus abrem-se nas esquinas de maior movimento”.
Se certamente as pessoas vão discutir a relevância e ligação com o conjunto de algumas das interpretações, não vão certamente sentir-se defraudadas do conjunto e da ideia final que resulta.
O cenário, que é composto por uma maquete da ‘cidade’ de Telheiras, que acaba por servir os actores das mais diversas formas, “está muito relacionado com o projecto e com isso surgiu a maquete que seria a base que foi construída com materiais reunidos por toda a gente”.
Outro dos elementos que se utilizou de forma mais presente pela primeira vez numa peça do grupo foi uma câmara. Esta experiência veio enriquecer o trabalho, pois “a multimédia acabou por complementar a cenografia o que fez com que a maqueta ganhasse vida pelas brincadeiras que fizemos com a escala”.
O rumo sócio-cultural que Portugal segue nos dias de hoje está na ordem do dia, e cada vez mais se reflecte acerca do conceito de comunidade, ou da falta dela. O Teatroàparte veio, uma vez mais, e desta vez de forma explícita, reforçar que ainda existe em Lisboa esse sentimento, com uma memória colectiva muito portuguesa destes 35 anos de democracia portuguesa, independentemente dos interesses particulares».