A ervanária ainda não abriu a porta, apesar de serem cinco da tarde. A loja das camisas tem o letreiro a dizer ‘aberto’, luzes acesas e trancas na porta. O restaurante está sempre de cortinas corridas, com ar de fechado para balanço. Estes estabelecimentos estão abertos, mas à porta fechada. É preciso bater à porta ou tocar à campainha para entrar.
Num beco da zona nova de Telheiras, junto ao hipermercado (da Av. das Nações Unidas), a papelaria foi assaltada duas vezes e o dono teve uma arma apontada às costas. No restaurante Lizárran, da esquina, já entraram de caçadeiras 1. A loja das camisas foi assaltada num dia de Julho e, três dias depois, foi a vez da loja de brinquedos.
As clientes do cabeleireiro foram trancadas no gabinete de estética. Uma família foi assaltada num 6º andar mas só deu por isso quando o filho não encontrou os 600 euros que estavam no mealheiro em forma de porco. O arrendamento de uma loja de 30 metros quadrados custa perto de 1500 euros. E se uns acham que não vale o preço, outros dizem que Telheiras é um bairro tão bom para se viver que merece o risco.
“Nem que me oferecessem uma casa eu vivia aqui. Isto é um bairro de casas modernas num cenário que parece de há 50 anos”, diz a dona de um café.
A empregada da engomadoria Joaninha, próxima do prédio onde, recentemente, uma adolescente de 17 anos foi violada na semana passada 2, pelo contrário, lamenta que “não dá para viver aqui. As casas são lindas, mas são mesmo para os ricos”.
O dono da loja de camisas, a quem já roubaram várias vezes camisas pela caixa de correio com um gancho comprido e que planeia pôr grades, ainda não encontrou motivos para mudar de zona: “Estou neste ramo há 20 anos e em Telheiras há cinco. A verdade é que aqui há bons clientes”.
Telheiras, com amor Quem mais morre de amores por Telheiras são os primeiros, os que foram viver para um bairro recém-nascido colado ao Estádio de Alvalade, quando Telheiras deixou de ser uma aldeia e passou a ser um bairro urbano, planeado pela EPUL nos anos 70.
O bairro urbano de Telheiras nasceu nos anos 1970 e já foi candidato a melhor bairro da Europa
O charme do bairro “Telheiras tem um carisma muito especial. Gosto muito de viver aqui”, diz uma empregada bancária de 51 anos. Desvaloriza as conversas de café sobre o violador: “Tenho a sensação de que as coisas às vezes são um bocadinho empoladas. É evidente que não há nenhum sítio que seja 100% seguro. Mas Telheiras é um bairro pacato. Os meus filhos, quando saem à noite, vêm de metro para casa sem qualquer problema. Faço parte do grupo de teatro, venho para casa sozinha à meia-noite e tal tranquilamente”.
O crime diminuiu? A verdade é que naquela noite houve cinco violações na Grande Lisboa, só uma delas em Telheiras. E o chefe da PSP da 19ª esquadra de Telheiras garante: “Estou aqui desde 1991 e nunca houve tão pouca criminalidade como agora. Os casos de criminalidade mais badalados foram facilmente resolvidos com brigadas à civil”.
A EPUL escolheu Telheiras para se candidatar ao ‘Prix Rotthier 2008 - O Melhor Bairro da Europa’ 3. O que tem Telheiras para ambicionar ser o melhor da Europa?
Os moradores respondem sem esforço. O mesmo que tem para lhes ser tão querido. Ruas - quase todas - impecavelmente limpas e ‘sem cocós’, parques infantis, espaços verdes, escolas bem cotadas nos rankings, prédios com isolamento e pintados como novos, garagens, comércio tradicional, uma associação de residentes activa, bons acessos, proximidade do centro de Lisboa, tranquilidade de aldeia, zona de bares e esplanadas “simpáticas e concorridas”.
Na classe média alta “é um bairro muito bem frequentado, com médicos, políticos, procuradores, professores universitários. Costumo dizer que sou o único não doutor do meu prédio”, diz um reformado de cabelos brancos que segura os óculos no nariz. E há mais: “É um bairro jovem, com gente bonita”.
Confirma-se: a freguesia do Lumiar é uma das mais populosas de Lisboa e também uma das mais jovens. Porque o bairro renova-se.
“A minha filha também vive aqui", continua o reformado, que comprou um T3 em 1980 por 8 mil contos (hoje um T3 custa entre os 200 e os 350 mil euros). “Nós somos a primeira geração de Telheiras. Mas já há uma segunda geração que escolhe aqui viver”, diz um casal que há 15 anos vê em Telheiras “o local ideal para viver em Lisboa” - apesar de a filha ter sido assaltada no elevador sob a ameaça de um x-acto.
Depois há a tal segunda geração de telheirenses. Vive há quatro anos numa Telheiras renovada que se estendeu para Carnide e para o Paço do Lumiar e só tem razões para dizer bem. “Está dentro de Lisboa mas é sossegado. Tem metro e transportes, mercearias de bairro faseadas com hipermercados, bares à noite e uma óptima biblioteca municipal com internet grátis”, enumera um jovem técnico de gestão de projectos de 25 anos.
Moradores e comerciantes disparam mil justificações para que o bairro - que ficou conhecido como o “bairro dos doutores” e onde o mais fácil é encontrar prédios iguais cor-de-rosa barbie - tenha episódios pontuais de criminalidade.
“Se fosse um bairro pobre, os ladrões não vinham para aqui, não é?”, questiona a dona do Claket Café, forrado a posters de cinema. E assume entre dentes que, apesar de nunca ter tido problemas, no Inverno fecha a porta às 18h30 e só atende quando vê que a pessoa a espreitar pelo vidro “é conhecida”.
Falam da concentração de riqueza, da proximidade do bairro da Horta Nova, das casas vazias durante o dia “num bairro cada vez mais dormitório”, dos riscos de ter uma estação de metro fim de linha e “ponto de paragem de autocarros vindos da Damaia e da Pontinha”, da arquitectura do bairro com becos e arcadas, onde “é fácil esconder e fugir”.
O chefe da esquadra não duvida que o chavão de bairro de classe média/média-alta é o melhor íman para os assaltantes: “Sabe-se que Telheiras é uma zona de bons carros e como as pessoas têm um melhor nível de vida é mais provável que tenham ouro e outros bens valiosos em casa”.
O futebol tem as costas largas e chega ao pódio no vox-pop. Todos os moradores, sem excepção, dizem que os maiores problemas de Telheiras chegam nos dias de jogo. Males de um bairro plantado entre os dois estádios dos grandes e colado a Alvalade quase como um pega-monstro.
“Já me chegaram a estacionar na rampa de acesso à garagem”, afirma uma moradora que da janela avista os azulejos coloridos do estádio de Tomás Taveira. O residente ‘não doutor’ do “bairro dos doutores”, fala antes de um “aproveitamento do futebol” com convicção: “Vêm pessoas de todo o sítio ao futebol. Não digo os adeptos, mas os que vêm com eles. Há mais gente no bairro, passam mais despercebidos. Veja, a violação foi num dia de futebol” 4.